De bermuda e chinelo
Desço na Nossa Senhora ao 800, ali onde a Dias da Rocha da de bunda com a avenida. Com o Cristo Redentor coberto pela névoa, já se sabe que a chuva vem, mas até o Zeca Ribeiro teria nojo de mais uma noite de decadência às avessas neste apartamento. Zero contribuição ao cômputo do PIB. Caminho em direção ao contínuo Domingo Ferreira—Aires Saldanha, uma planária enfiada entre o chorume urbano e a umidade do beira-mar. Terça-feira é choro, de música e dos céus.
Os pléibas (ler: a mulecada do médio) já me disseram que passando o Cantagalo já não é mais zona sul. Foda... Esqueceram do Jorge Ben alojado no anexo do Copacabana Palace? Até tem um Belmont para eles se refugiarem dos perigos cariocas, nem pensar numa Pedra de Sal ou uma roda mangueirense. Meu destino não é nada disso, nem vou sair da zona sul. Só vou até ali, o largo do Alfredinho. (Nem falar de ir andando à noite. Gaslighting de classe.)
Virando na Almirante Gonçalves, a premonição do Cristo se concretiza. O toldo da Karoline Coiffeur Unissex abriga um grupo de flamenguistas do torrencial. Uma roda de cadeiras de botequim rodeia a vitrine fechada, através da qual se espia a televisão. É final da Recopa Sul-Americana. Independiente do Ecuador já marcou 1x0 e a enrolação no campo é recebida com um "demora... demora filho da puta" dirigido às telas. A flauta vindo de duas casas à direita irrita os espectadores. Cultura popular dividida.
Lá, o Bip Bip está lotado. São três mesas de boteco, cobertas por toalhas de plástico quadriculadas e uma breja para cada um da dúzia de músicos. Fintando e driblando com seu pandeiro, um ruivo calvo mantém a base. À direita está a velha guarda: dois violão e o senhor mais velho com uma tabuinha de percussão de vinte por dez centímetros, batendo inaudível com mini-baquetas. No fundo, os jovens: duas flautas e um trombone. À esquerda, um casal de meia-idade com flauta e clarinete. Pelo respeito palpável nas olhadas, parece que o convidado especial está no cavaquinho. O percussionista back-up é que tá no reco-reco. K-Ximbinho pede sossego enquanto ressoa um "vai, é tua porra" dos vizinhos.
Sobre a calçada portuguesa um gordinho senta na única cadeirinha fora do bar, pés alpargatados cruzados no tornozelo. Ele vigia as entradas e saídas e pede para abaixarem a voz e que deixem de fumar embaixo do toldo. É a força moderadora aplicando as placas grudadas nas paredes: "Não fique aqui! Atrapalha", "Rio sem fumo", e "Perfume não combina com Bip Bip, Alfredinho é alérgico." Os espectadores ficam em pé do lado de fora, espiando o improviso de dentro, espelhando os torcedores e sua vitrine. Sobra só um corredorzinho à esquerda do conjunto que leva às duas geladeiras do fundo.
Um cara me explica o esquema: "só pegar lá no fundo e avisar ele aqui ó." Voltando com uma latinha de Heineken, noto o papel quadriculado, sistema de "resource management". Meu nome vai na coluna da esquerda, com um palitinho ao lado, iniciando a contagem em quadradinhos de seis (os lados e as diagonais). Ao lado de uma pilha de CDs à venda, uma babushka de pratos fundos serve como caixa; notas de 5, 10, 20, e 50 escondidas entre cada matryoshka. Pergunto seu nome: "Matias." "Ah! Argentino?" Ele confirma o que a alpargata no pé e penteado grisalho já implica. Junto ao Arlt, somos três argentinos cativos da dulzura espesa, lenta, sabrosa carioca.
As três horinhas de choro que eu acompanho só são rompidas pelos gritos e fogos do gol do Arrascaeta ao 90+6' para empatar no agregado. "Vamos, caralho!" A música de fato para, não tem como ignorar o som da cidade. "Falei que ia ser gol" resmunga o voyeur trans-cultural ao meu lado. Meia-hora depois, após o pênalti perdido do mesmo Arrascaeta, um berro tricolor apenas acentua o choro. Vejo uma barata escalando o trilho do portão.
Entro de novo pelo corredor, aproveitando para me encaixar em um cantinho livre ao lado dos músicos. As paredes estão repletas de imagens: Um pôster de metro por metro do Alfredo com o Lula, legendado "sem medo de ser feliz." Ao lado, uma garrafa Red Label fantasiada de fantoche com a faixa presidencial, uma estrela vermelha, e a barba característica. Continuando pelo salão, uma bandeira del Che com o logo do MST. Uma foto do Pepe Mujica, assinada: "Por pátria para todos los latino-americanos." Outro pôster: um grupo de ushanka segurando uma bandeira escrita "Brasileiros saúdam a Revolução Bolchevique."
Uma onda passa pela roda, cadeiras se mexendo, músicos levantando as bundas mas sem parar de tocar. Espio a barata de novo, já na parede do fundo ao lado da flautista. Ela parece ter fobia mesmo. Puxo a Havaianas do pé e com um sshhtack contra um armário metálico, dou minha única contribuição musical da noite, a última nota do choro. Todo mundo ri. O ócio digno continua.
Cristóbal Sciutto, Março 2023.